2011/11/10
Os limites da política
DN 2011-11-07
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
O Governo não é dono disto. Apenas administra temporariamente a coisa pública em prol do bem comum. Em tempos de aperto toma naturalmente poderes de excepção. Mas mesmo na emergência deve ter consciência daquilo que não lhe compete. Não basta ter permissão e vantagem. É preciso bom senso para saber que há coisas que ultrapassam a conjuntura. Como os feriados.
O anterior Governo, aquele que levou o País à beira da ruína, achou-se com direito a mudar coisas básicas da sociedade, simplesmente por ter maioria ocasional. Enquanto tratava mal daquilo que lhe competia, atrevia-se a mexer no que tinha o dever de respeitar. Porque a definição de casamento e os limites da vida não podem estar ao sabor de coligações de momento.
O modelo original de núpcias da Lei n.º 9/2010 de 31 de Maio deve-se a um conjunto de deputados que achou que uma simples votação, sem referendo, quase sem consulta e discussão, pode alterar um dado básico da civilização. No caso do aborto (Lei 16/ /2007 de 17 de Abril) ao menos houve referendo, mas seguido de fraude. Porque a pergunta a sufrágio era sobre a despenalização, mas o Governo sentiu-se com poder para estabelecer a liberalização e subsidiação do aborto. Para perceber a diferença, era como se a descriminalização do consumo de drogas aprovada há 11 anos (Lei n.º 30/2000 de 29 Novembro) implicasse a distribuição de heroína barata pelo Estado. Espantoso que esta supina desonestidade política não só tenha vingado, mas seja a única coisa intocável pelos cortes na Saúde do actual Governo.
Os extremos a que chegou o Executivo Sócrates são difíceis de igualar, porque ainda seria preciso referir a promoção do divórcio (Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro), manipulação de embriões (Lei 32/06, de 26 de Julho), etc. Mas o actual Governo, no meio das medidas duras da troika, já exorbita das suas funções quando se pensa com direito a mexer nos feriados.
As celebrações comunitárias que temos, com raízes culturais profundas, não são exageradas nem exigem reforma. Aliás o Governo não apresenta nenhuma razão específica para as alterações que pretende. Vai mudar os feriados, não por causa de problemas dos feriados, mas simplesmente para as pessoas trabalharem mais. Ora se a questão é laboral, lide-se com ela em termos laborais. Mexa-se no horário de trabalho ou cortem-se dias de férias, mas não se toque naquilo que recebemos em herança e que temos de deixar aos que nos sucederem. Será que também vamos cortar o hino para acelerar as cerimónias ou vender o Algarve para pagar dívida?
A culpa do exagero é nossa. Este tempo, que perdeu o sentido da ética, tradição e dignidade, atribui à lei e política responsabilidades que não lhes cabem, em substituição da honra e moral em que deixou de acreditar. Quando pedimos ao Estado que nos resolva todos os problemas ou, pior, se acusamos os políticos de tudo o que corre mal, não nos podemos admirar que eles tomem liberdades com coisas que não lhes competem.
As gerações futuras vão rir desta triste época em que as leis se medem em dúzias por semana e julgam regular tudo, da violência familiar às brincadeiras de crianças e qualidade do ar. A atitude de ingenuidade e arrogância que subjaz a esta inflação legislativa e paternalismo regulatório fará as delícias dos nossos sucessores, que entretanto terão aprendido as terríveis consequências deste dirigismo desabrido. Que, aliás, mostra evidentemente a sua ineficácia, porque apesar de todos os programas, estratégias e aparato político, continua a haver fogos florestais, acidentes rodoviários, crises económicas.
No meio da confusão é difícil aos ministros conhecer os seus limites. Não interessa se têm poder para o fazer. Evidentemente que no Governo há legitimidade legal e constitucional para alterar o que pretende. O que lhe falta é outra legitimidade mais profunda. Trata-se simplesmente de uma coisa que não lhe compete, porque aí falamos, não de legislatura, mas de séculos. Como no caso do casamento e da vida, a lei só vale no respeito da civilização.
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
O Governo não é dono disto. Apenas administra temporariamente a coisa pública em prol do bem comum. Em tempos de aperto toma naturalmente poderes de excepção. Mas mesmo na emergência deve ter consciência daquilo que não lhe compete. Não basta ter permissão e vantagem. É preciso bom senso para saber que há coisas que ultrapassam a conjuntura. Como os feriados.
O anterior Governo, aquele que levou o País à beira da ruína, achou-se com direito a mudar coisas básicas da sociedade, simplesmente por ter maioria ocasional. Enquanto tratava mal daquilo que lhe competia, atrevia-se a mexer no que tinha o dever de respeitar. Porque a definição de casamento e os limites da vida não podem estar ao sabor de coligações de momento.
O modelo original de núpcias da Lei n.º 9/2010 de 31 de Maio deve-se a um conjunto de deputados que achou que uma simples votação, sem referendo, quase sem consulta e discussão, pode alterar um dado básico da civilização. No caso do aborto (Lei 16/ /2007 de 17 de Abril) ao menos houve referendo, mas seguido de fraude. Porque a pergunta a sufrágio era sobre a despenalização, mas o Governo sentiu-se com poder para estabelecer a liberalização e subsidiação do aborto. Para perceber a diferença, era como se a descriminalização do consumo de drogas aprovada há 11 anos (Lei n.º 30/2000 de 29 Novembro) implicasse a distribuição de heroína barata pelo Estado. Espantoso que esta supina desonestidade política não só tenha vingado, mas seja a única coisa intocável pelos cortes na Saúde do actual Governo.
Os extremos a que chegou o Executivo Sócrates são difíceis de igualar, porque ainda seria preciso referir a promoção do divórcio (Lei n.º 61/2008 de 31 de Outubro), manipulação de embriões (Lei 32/06, de 26 de Julho), etc. Mas o actual Governo, no meio das medidas duras da troika, já exorbita das suas funções quando se pensa com direito a mexer nos feriados.
As celebrações comunitárias que temos, com raízes culturais profundas, não são exageradas nem exigem reforma. Aliás o Governo não apresenta nenhuma razão específica para as alterações que pretende. Vai mudar os feriados, não por causa de problemas dos feriados, mas simplesmente para as pessoas trabalharem mais. Ora se a questão é laboral, lide-se com ela em termos laborais. Mexa-se no horário de trabalho ou cortem-se dias de férias, mas não se toque naquilo que recebemos em herança e que temos de deixar aos que nos sucederem. Será que também vamos cortar o hino para acelerar as cerimónias ou vender o Algarve para pagar dívida?
A culpa do exagero é nossa. Este tempo, que perdeu o sentido da ética, tradição e dignidade, atribui à lei e política responsabilidades que não lhes cabem, em substituição da honra e moral em que deixou de acreditar. Quando pedimos ao Estado que nos resolva todos os problemas ou, pior, se acusamos os políticos de tudo o que corre mal, não nos podemos admirar que eles tomem liberdades com coisas que não lhes competem.
As gerações futuras vão rir desta triste época em que as leis se medem em dúzias por semana e julgam regular tudo, da violência familiar às brincadeiras de crianças e qualidade do ar. A atitude de ingenuidade e arrogância que subjaz a esta inflação legislativa e paternalismo regulatório fará as delícias dos nossos sucessores, que entretanto terão aprendido as terríveis consequências deste dirigismo desabrido. Que, aliás, mostra evidentemente a sua ineficácia, porque apesar de todos os programas, estratégias e aparato político, continua a haver fogos florestais, acidentes rodoviários, crises económicas.
No meio da confusão é difícil aos ministros conhecer os seus limites. Não interessa se têm poder para o fazer. Evidentemente que no Governo há legitimidade legal e constitucional para alterar o que pretende. O que lhe falta é outra legitimidade mais profunda. Trata-se simplesmente de uma coisa que não lhe compete, porque aí falamos, não de legislatura, mas de séculos. Como no caso do casamento e da vida, a lei só vale no respeito da civilização.